Publicado originalmente através do projeto CinéPhilos, do PET Paideia (UFU).
O grupo de estudantes maoistas de A chinesa (Jean-Luc Godard, 1967) se encontra isolado não somente das massas, sejam elas revolucionárias ou não, mas também da sociedade como um todo. Ao longo do filme, os militantes instauram um movimento em abismo na medida em que vão se dobrando sobre si próprios, exprimindo certa impotência dissimulada que é tão característica do estudante, “escravo estoico a acreditar que quanto mais numerosas forem as cadeias de autoridade que o prendem, mais livre ele será. Como sua nova família, a universidade, ele se julga o mais ‘autônomo’ dos seres sociais, sem se perceber atado, direta e conjuntamente, aos dois mais potentes sistemas de autoridade social: a família e o Estado. Ele é o filho bem-comportado e agradecido de ambos”.1 A título de evidência, retomemos o escasso fio narrativo do filme: grupo maoista se mobiliza em um apartamento emprestado, cujo uso depende da ausência dos proprietários, por um acaso os pais de um dos militantes. Com o eminente fim das férias familiares, findam também as ações do grupo, o que coincide com o encerramento da obra ela mesma.
As sequências de A chinesa nunca ambicionam vincular, de modo verossímil, as ações dos protagonistas e as lutas em China ou Vietnã. O sangue-guache, que dilui reiteradamente a representação; ou a gaze que, na ausência de um ferimento real, serve de adorno a vestir com fineza o pescoço de Guillaume (Jean-Pierre Léaud). Como qualquer filme, A chinesa se constitui a partir de uma cisão – sujeito e objeto, narração e narrativa, representação e representado, discurso e diegese. Cisão essa que, caso sigamos os procedimentos da montagem tradicional, deve ser suturada (Jean-Pierre Oudart), sem que se deixe os fios à mostra, com o objetivo de construir a aparência de um todo contínuo. Com Godard, ao contrário, trata-se de escancarar a ferida, e é a própria cisão que passa a servir de elemento unificador, contra a continuidade simulada do filme clássico.
O filme narra o encontro entre duas criaturas remotas. A primeira delas corresponde ao militante maoista europeu, tipicamente definido pela dilacerante contradição de ser politicamente radical, porém desencantado com a política radical. Antes de passar à segunda criatura, é necessário precisar alguns dos limites contextuais que circunscrevem o filme. De passagem, cabe notar a crise do socialismo real, fruto do descrédito que os partidos comunistas de todo o ocidente, domesticados e reduzidos a satélites da patria-mãe soviética, conspurcada que se encontrava graças à contrarrevolução estalinista, crise cujo presságio data do massacre de Xangai (1927)2 mas que se realiza somente na década seguinte com os julgamentos encenados de Moscou. Já se encontram aí todos os elementos que anos mais tarde tornariam inevitável a ruptura sino-soviética. Dentre os frutos de tais acontecimentos, nos interessa em particular a inflexão maoista de parte significativa da esquerda radical no ocidente, com o intuito de escapar da órbita soviética. A reviravolta encontra o seu auge no começo dos anos 60, de onde A chinesa é matéria exemplar.
O sol vermelho do oriente traz consigo a imagem de Mao Tsé-Tung; eis aí a segunda criatura. O maoismo do qual o filme é porta-voz se encontra enclavado, em duplo sentido. Por um lado, no interior da geocultura européia, sem encontrar aí quaisquer condições para compôr efetivamente uma frente internacionalista ao lado dos revolucionários que marcham à distância nas estepes chinesas. Por outro lado, enclavado na subjetividade limítrofe e prepotente da figura do estudante, tal como sugere a crítica situacionista com a qual abríamos este texto. O resultado, ao que parece, é a violência cega do terrorismo. Ainda assim, tout va bien – título aliás de outro filme maoista assinado por Godard –, logo os pais chegam de viagem e os estudantes devem reassumir a sua dupla condição, em que se entrelaçam pluripotência subjetiva com impotência objetiva. Que o filme faça troça da figura fica evidente pelo fato de que, sendo estudantes, toda a sua obra se passa no interregno propiciado pelas férias escolares.
Se A chinesa representa já o escape de Godard da nouvelle vague pela via do radicalismo político – a gênese do grupo Dziga Vertov se encontra nestes sets de filmagem, frequentados assiduamente por Jean-Pierre Gorin, com quem Godard funda o grupo no ano seguinte –, o cineasta franco-suiço nem por isso abandona a sua obsessão cinéfila e com a história do cinema, elementos que caracterizaram o conjunto de filmes dos cineastas que se concentraram ao redor da revista Cahier do Cinema (Rivette, Truffault, Chabrol, Rohmer, Godard). É essa a origem parcial de boa parte das joias essenciais do que hoje se chama Nouvelle Vague.
Ligeiramente diferente era o que se fazia do outro lado do Sena, na Rive Gauche, através de realizadores igualmente implicados na “política dos autores”,3 isso desde que realizemos algumas ligeiras permutações. Subtraia-se a Cahiers e a cinefilia, adicione-se as páginas de uma Tel Quel e a literatura de vanguarda do Noveau Roman. Marguerite Duras e Alain Robbet-Grillet são dois dos exemplos paradigmáticos: grandes cineastas que eram, antes de tudo, grandes escritores.Para completar o cânone: Chris Marker, Agnès Varda e Alain Resnais. As duas revistas, à época funcionando como membros polares da equação Nouvelle Vague, acabaram igualmente por fazer a conversão – a essa altura, sem qualquer surpresa – ao afluente do maoismo francês nos arredores de 1970.
Retomemos o nosso filme. O revolucionário europeu encena a revolução, tal como em Moscou se encenam julgamentos dos opositores de Stálin. Com a diferença de que, para Godard, não se trata de encenar de modo verossímil, visando produzir um efeito de realidade. O filme não busca suprimir a distância que separa o maoismo francês dos comunismos em China ou Vietnã, ainda que seja essa a intenção de suas personagens. A obra recusa o recurso à empatia, à identidade afetiva que com tanta facilidade faz perder de vista o caráter fabricado da intimidade que o cinema costuma produzir. Ao contrário, A chinesa desnuda como vexatórios o conjunto de atos performáticos que, levados a cabo pelo grupo maoista, ensejam transpôr o abismo que lhes segrega das lutas concretas no leste remoto. Do mesmo modo, nenhuma complacência para com o espectador – também a nós parece remota a realidade da luta revolucionária, como de fato ela é. Ao menos enquanto nos conservamos na posição de espectadores.
A certa altura, a personagem de Jean-Pierre Léaud, Guillaume, evoca dois dos pais fundadores da aventura cinematográfica: os irmãos Lumière e George Méliès. Em mais uma das lições ministradas pela personagem ao restante do grupo, o tema são os assuntos do dia. Como situar, de um ponto de vista revolucionário, os fatos cotidianos e as manchetes dos jornais no âmbito da representação cinematográfica? Ou ainda, como conceber a ideia de um cinema de atualidades? A retomada do cinema selvagem dos primeiros tempos não é despropositada. É através do choque entre dois regimes de visualidade muito distintos – cujas matrizes se constituem já nos primeiros tempos de cinematógrafo – que A chinesa anuncia para o espectador os seus princípios construtivos. De um lado, o mágico Méliès, que faz uso do cinematógrafo visando a produção de uma miríade de truques visuais, atrações fundadas em um pacto entre obra e espectador que coloca à mostra as regras do jogo. Da mesma maneira, Godard arranja o seu filme através de uma sequência de gags visuais, se aproximando das trucagens e artifícios que proliferavam nas imagens de Méliès. Por outro lado, os industriais Lumière apostam no fascínio provocado pelo vislumbre de lugares exóticos, levando a cabo a vocação do cinematógrafo de dispor do mundo.4 Um cinema da mostração, que dissolve a distância física na intimidade simulada entre imagem e espectador.
Na cena em questão, Godard afirma curiosa inversão. A ficção fantasiosa de Méliès, que deslumbra ao desconcertar o real, reconfigurando-o livremente e de frente para o espectador, é ela a escolhida como veículo mais adequado dos fatos e atualidades. Por outro lado, os filmes de viagem dos Lumière, que de fato buscam o registro, são o dejeto reacionário. Isso por ocultarem, por detrás do fascínio produzido por retratos de lugares exóticos,5 todo o aparelho e a atividade construtiva do cinematógrafo. Godard se interessa por abismar o espaço entre a coisa e sua imagem – vencer os falsos poderes da fotografia, para usar a grandiosa expressão de Robert Bresson que, em um só golpe, anuncia todo um programa estético. Méliès, o pai da fantasia, se encontra mais próximo da realidade que os registros documentais dos Lumière. O filme promove assim a revisão de certas demarcações. Méliès não é só o herói da ficção, o mágico inventor de mundos; ele é também o pai do registro e do documento visual, e isso graças à fantasia, e não apesar dela. A chinesa nos informa, por exemplo, que um filme como Le voyage dans la Lune (1902) é um documento factual da realidade, nada tendo a ver com ficção ou com os delírios da imaginação, rótulos que lhe são tradicionalmente apregoados. Naturalmente que a essa altura ainda não havíamos chegando até a lua; Apollo 11 data de 1969. Godard, ao descrever Le voyage como registro factual, antecipa a empreitada estadunidense em dois anos. Meliés, visionário, por sessenta e sete.
Godard faz uso do cinema de modo a tensionar, ao mesmo tempo, a finalidade de seu suporte técnico. A imagem cinematográfica almeja a submissão do mundo, mimetizando-o até o ponto em que pode finalmente tomar o seu lugar. A invenção do cinematógrafo, quando adiciona à objetividade fotográfica a ilusão do movimento, habilita finalmente o ser humano a representar o mundo com precisão assombrosa. Da invenção dos Lumière, em 1895, existe uma linha reta que vai até a película a cores e aos aperfeiçoamentos óticos necessários para as tomadas em profundidade. O critério para o progresso técnico é a crescente capacidade de reproduzir, de modo fidedigno, a realidade sensível. Contra a tendência de fazer submergir o potencial estético do cinema na sua sedutora técnica de reprodução, A chinesa recusa o privilégio da representação e produz imagens viradas do avesso, estranhadas e desentranhadas.
Se o intuito da obra passa ao largo da representação do outro, a alteridade não deixa contudo de cumprir um papel importante no filme de Godard. Tomemos de exemplo a aparição, num ímpeto de violenta solidariedade, da personagem de Omar Diop, que interpreta um revolucionário e professor argelino. Sendo imigrante, e portanto restolho do passado-presente colonial francês, é o único, dentre o grupo de militantes, capaz de ver com os olhos livres. O marxismo-leninismo finalmente deixa de ser o que, na melhor das hipóteses, significaria a autocrítica da inteligência da metrópole; apropriado pelo outro, que se impõe e exige os seus direitos como sujeito, recupera a sua vocação enquanto genuína práxis da emancipação humana.
A chinesa parte da afirmação de sua própria impotência. Elaboração artística alguma pode superar a distância entre discurso e realidade. A revolução, que serve de matéria para o filme, não avança um palmo devido à sua só representação. Se a obra anuncia gloriosamente a sobrevida do ideal revolucionário para além do socialismo soviético, ela o faz não tanto através do conteúdo que encena, isto é, dos lances ensaiados pelos estudantes que gritam “Mao, Mao, Mao”; mas sim através da dissolução do naturalismo e da representação. A imagem pode muito, mas não pode, tal como almeja todo ato representativo, se pôr no lugar de seu objeto. Ao fim e ao cabo, o filme realiza uma refutação das aparências. Não era outra coisa que fazia o próprio président Mao quando, triunfante, asseverava: os imperialistas e reacionários não passam de tigres de papel.6
Texto situacionista, de autoria coletiva. A tradução que utilizamos se encontra na saudosa coleção “Baderna” (Conrad), em volume intitulado Situacionista: teoria e prática da revolução (2002, p. 33). Aproveitando a ocasião, lembremos de passagem a notória hostilidade, para dizer o mínimo, do grupo em relação a Jean-Luc Godard, “otário supremo dentre os maoistas suíços”. Quanto à posição dos situacionistas em relação ao filme que aqui tematizamos, deixemos que o leitor faça as suas próprias conjecturas… ↩︎
Acontecimento no qual Stálin cumpre função tutelar, tendo passado os meses antecedentes fazendo troça dos reiterados alertas por parte da oposição de esquerda, ao mesmo tempo em que financiava a escalada militar do Kuomintang de Chiang Kai-shek. O resultado, como se sabe, foi o massacre de milhares de trabalhadoras e camponesas do partido comunista chinês no ano de 1927. Ver Pierre Broué, Comunistas contra Stálin, Sepha, 2008, p. 93 ss, e também a obra de Harold Isaacs, The tragedy of the chinese revolution. ↩︎
A pedra basilar para compreender a política de autores é ainda o artigo de Alexandre Astruc, Nascimento de uma nova vanguarda: a cámera-stylo (1948), disponível em https://focorevistadecinema.com.br/FOCO4/stylo.htm. ↩︎
Ver, por exemplo, o texto de Roberto Schwarz sobre Os fuzis, (Ruy Guerra, 1964), disponível em: http://www.contracampo.com.br/27/fuzisschwarz.htm. ↩︎
Hoje, por outro lado, já não se pode mais falar de exotismo, já que a supressão das distâncias entre ocidente e oriente se tornou realidade efetiva. Na China, a fluidez dos mercados causa inveja aos investidores ocidentais; ao mesmo tempo, o populismo autoritário do ocidente evoca cada vez mais ares do mais típico despotismo oriental. ↩︎
“Eu afirmei que todos os reacionários, reputados possantes, não são mais do que tigres de papel. Isso é assim porque eles estão desligados do povo. Vejam! Hitler era ou não era um tigre de papel? Hitler foi ou não foi derrubado? Eu afirmei igualmente que o czar da Rússia, o imperador da China e o imperialismo japonês eram todos tigres de papel e, como vocês bem sabem, eles foram todos derrubados. O imperialismo norte-americano ainda não foi derrubado, ele possui a bomba atômica. No entanto, eu penso que ele será igualmente derrubado. Trata-se também de um tigre de papel” (1957). ↩︎