Publicado originalmente para a cobertura do 31° Kinofórum (2020).
Um mundo mais humano (Gavin Hipkins, 2019) é um ensaio visual a respeito da crença otimista e irrefletida que equaciona progresso técnico-científico e progresso social, em especial no âmbito do debate, característico do período retratado pelo filme, dos usos e abusos da energia nuclear. O filme parte de fotografias, feitas pelo pai do diretor, da EXPO 58, Feira Mundial ocorrida no ano de 1958 na Bélgica, cujo slogan – um balanço do mundo, para um mundo mais humano – serviu de sugestão para o título do curta. O mundo em questão é aquele idealizado pela ciência moderna, mundo em que progresso significa domínio da técnica sobre a natureza, do humano sobre o seu ambiente, em um momento em que tal domínio parece se extender até às partículas elementares da matéria.
O filme faz uso também de filmagens contemporâneas do Atomium, monumento colossal, construído durante a EXPO 58 e que representa em escala muitíssimo ampliada a estrutura elementar de um cristal de ferro. A construção presta homenagem às conquistas da ciência e é símbolo da chamada Era Atômica, período que tem início com o término da Segunda Guerra Mundial e que foi marcado por um discurso que preanunciava um futuro utópico graças aos potenciais da energia nuclear. A câmera que capta o monumento se desloca como se estivesse a orbitar o centro de uma esfera, procedimento que lembra o épico abstrato La région centrale (Michael Snow, 1971), além de servir de metáfora visual da clássica representação científica das partículas constituíntes do átomo como um sistema de órbitas.
Além do registro propriamente fotográfico, o filme é composto por outros materiais: maquetes e modelos de computação gráfica, padrões de cores e ruídos sonoros, além de uma diversidade de cartelas e intertítulos. Estes últimos oferecem, a golpes de síntese – HUMANISMO, O FUTURO, CIVILIZAÇÃO TECNOLÓGICA, DESARMAMENTO MUNDIAL, CONTAMINAÇÃO DA ATMOSFERA –, as linhas gerais do debate quanto à questão do uso, promessas e limites da tecnologia nuclear, no âmbito mais geral do progresso da técnica e da ciência. De passagem, é importante ressaltar que o marco inicial do perturbador otimismo da Era Atômica, festejado pela feira mundial Belga, são os primeiros usos em larga escala de tecnologia nuclear, em especial a barbárie sem precedentes da bomba de Hiroshima.
Ao fazer colidir as fotografias de arquivo, as maquetes tridimensionais de estruturas atômicas, as varreduras orbitais do Atomium, tudo isso entrecortado pelo conjunto mencionado de intertítulos e seus anúncios telegráficos, o filme de Hipkins age como um acelerador de partículas, tensionando esse discurso do progresso que foi capaz de permanecer cego mesmo diante do clarão mais intenso já produzido pela espécie humana.
A ideologia atômica que o filme expõe é hoje datada, mas a sua contraparte material, isto é, as milhares de ogivas nucleares atualmente concentradas nas mãos de poucas potências mundiais, seguem à espera de seu acionamento. Daí a atualidade do filme, que nos faz pensar as futuras catástrofes que hoje nos avizinham, boa parte delas provocadas por um ideal civilizatório que visa reduzir o mundo à nossa imagem e semelhança.
Hoje parece ser o caso de defender, ao contrário, um mundo menos humano.